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A Apuração de Haveres na Dissolução Parcial de Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada

O atual posicionamento doutrinário e jurisprudencial dominante acerca da apuração de haveres na dissolução parcial de sociedades por quotas de responsabilidade limitada tem como pilar central o julgamento, pelo STF, do RE 89.464/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Cordeiro Guerra, Rel. p/ acórdão Min. Décio Miranda, DJ de 04.05.1979, no qual ficou decidido que

“deve ser assegurada ao sócio retirante situação de igualdade na apuração de haveres, fazendo-se esta com a maior amplitude possível, com a exata verificação, física e contábil, dos valores do ativo”.

O raciocínio então desenvolvido foi de que se deveria conceber uma forma de liquidação que assegurasse, concomitantemente, a preservação do empreendimento e uma situação de igualdade entre os sócios.

O STJ, ao assumir o papel uniformizador da legislação infraconstitucional, ratificou o entendimento, fixando que,

“na dissolução de sociedade de responsabilidade limitada, a apuração de haveres (…) há de fazer-se como se dissolução total se tratasse”,

salientando que a medida

“tem por escopo preservar o quantum devido ao sócio retirante (…), evitando-se o locupletamento indevido da sociedade ou sócios remanescentes em detrimento dos retirantes”. (REsp 35.702/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ de 13.12.1993. No mesmo sentido: REsp 89.519/ES, 3ª Turma, Rel. Min. Nilson Naves, DJ de 04.08.1997; REsp 105.667/SC, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 06.11.2000; e REsp 197.303/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 15.04.2002).

Nesse contexto – em respeito à premissa adrede fixada, de preservação da sociedade e do montante devido ao sócio dissidente – mesmo que o contrato social eleja critério para a apuração de haveres, este somente prevalecerá caso haja a concordância das partes com o resultado alcançado.

Havendo dissenso, faculta-se a adoção da via judicial, a fim de que seja determinada a melhor metodologia de liquidação, hipótese em que a cláusula contratual somente será aplicada em relação ao modo de pagamento.

Em recente julgamento no STJ, duas questões foram submetidas à Terceira Turma:

a) na dissolução parcial de sociedade limitada, deve prevalecer o critério de apuração de haveres previsto no contrato social ou é admissível a escolha de outro para determinação do valor efetivo da empresa?

e

b) pode ser utilizada a metodologia do fluxo de caixa descontado para se calcular esse valor?

A relatora, Ministra Nancy Andrighi, inclinou-se pela aceitação de critério diverso daquele previsto no contrato social na hipótese de o sócio retirante não concordar com o resultado obtido e, com base em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, afirmou ser o balanço de determinação o melhor critério a ser utilizado na apuração dos haveres. Quanto à metodologia a ser usada no levantamento do balanço, entendeu inexistir óbice à utilização do fluxo de caixa descontado, na medida em que esse método permite estabelecer o preço de mercado da sociedade, ou seja, o valor patrimonial real da empresa.

O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva divergiu da relatora ao entendimento de que, no âmbito do direito societário, deve-se prestigiar o princípio do pacta sunt servanda de modo a impor a adoção do critério contratado se inexistem vícios que maculem a avença. Além disso, discordou também do uso da metodologia escolhida pela relatora por considerá-la sujeita a relevante grau de incerteza e subjetividade.

Já o Ministro João Otávio de Noronha acompanhou o voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi.

No caso dos autos, o contrato social previa, para a hipótese de exclusão de sócio, o levantamento de um adoção especial, ajustado a valores de mercado, para apuração de seus haveres.

Ocorre que, realizado balanço pela parte recorrente quando já excluídos os autores, então recorridos, estes discordaram dos valores encontrados e pugnaram pela adoção de critério que consideraram mais correto, exatamente o balanço de determinação, com a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, à época em que à Suprema Corte cabia também a análise de questões infraconstitucionais, pacificou-se no sentido de que,

“na apuração de haveres, não prevalece o balanço não aprovado pelo sócio falecido, excluído ou que se retirou”,

a teor do enunciado da Súmula n. 265.

Em consequência, firmou-se o entendimento de que,

“na sociedade constituída por sócios diversos, retirante um deles, o critério de liquidação dos haveres, segundo a doutrina e a jurisprudência, há de ser, utilizando-se o balanço de determinação, como se tratasse de dissolução total” (REsp n. 35.702-0/SP, relator Ministro Waldemar Zveiter, DJ de 13.12.1993).

Segundo o saudoso Celso Barbi Filho,

“[…] o balanço de determinação é o levantado para a finalidade específica de se determinar o valor da quota reembolsável ao sócio desligado. Seu objetivo especial distingue-o dos demais, pela busca da aferição mais real e individualizada possível dos valores de um ativo não-realizado, deles deduzindo-se um passivo não-solucionado. O balanço que, pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, deve ser considerado na apuração de haveres da dissolução parcial é o de determinação” (Dissolução parcial de sociedades limitadas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 483).

Estabelecidas, pois, as premissas de que doutrina e jurisprudência já estão pacificadas quanto à necessidade de utilização do balanço de determinação em situações da espécie, bem como de que a lei não cuidou dos critérios contábeis para sua realização, permanece a polêmica no que diz respeito à metodologia a ser usada para a precificação dos haveres do sócio retirante.

Quanto ao uso da metodologia do fluxo de caixa descontado, oportuno trazer a lume as considerações do Professor Marcus Elidius Michelli de Almeida registradas no artigo Sociedade Limitada: causas de dissolução parcial e apuração de haveres, em que o articulista não só defende a utilização do referido método como o mais justo para definir o valor devido ao sócio retirante, mas também corrobora o entendimento adotado pela relatora Ministra Nancy Andrighi, de que tal critério pode perfeitamente se compatibilizar com o levantamento de balanço de determinação. Confira-se:

“É inegável que a empresa possui um valor de mercado deveras superior ao que consegue obter numa simples análise contábil como se dissolução total fosse. A propósito, é oportuna a manifestação de Rocco, quando menciona que a partir do momento em que ‘a organização dos vários elementos da produção atinge um certo grau de eficiência, o valor do complexo organizado é superior ao da soma dos diferentes elementos que o compõem’. A apuração deve ser sempre da forma mais ampla possível, levando em conta o fundo de comércio, os bens corpóreos e incorpóreos, o goodwill da empresa. Justamente por tais motivos é que afirmamos que o critério de avaliação dos haveres deve ser melhor estudado, a fim de não trazer distorções, injustiças e verdadeiro enriquecimento sem causa, para um ou para outro sócio. No nosso entender, é necessário que o aplicador da lei, seja ele juiz, advogado, árbitro ou perito, volte os olhos para outros critérios de avaliação que representem o valor real e justo da sociedade, que muitas vezes pode ser apurado pelo critério de avaliação de empresa com base no fluxo de caixa descontado trazido a valor presente. É cristalino, em toda a literatura contábil e econômica, que o critério de fluxo de caixa descontado é hoje o melhor método para encontrar o valor da empresa, sendo uma tecnologia científica contábil.” (Direito Processual Empresarial. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2012, p. 551/552.)

Prossegue o ilustre professor:

“O entendimento de que o fluxo de caixa pode ser utilizado para a apuração dos haveres parece-nos acertado, tendo em vista que esse método aponta o valor do ativo da empresa, que é um dos elementos do balanço de determinação, e tem por finalidade apurar o valor da empresa da forma mais justa possível, conforme bem aponta Martins: ‘Na elaboração do balanço de determinação, o perito deve buscar um valor econômico justo para a empresa avaliada; em decorrência disto é possível a aplicação do balanço de determinação juntamente com o fluxo de caixa descontado, método amplamente utilizado em negociações de fusão e aquisições, que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa. A tarefa mais complexa para o perito avaliador é determinar o valor do goodwill não adquirido, que será evidenciado no balanço de determinação, que pode ser apurado via fluxo de caixa descontado, que apura o valor da empresa de forma global, refletindo o valor dos intangíveis, que contribuíram para a geração de lucros e fluxos de caixa futuros.” (Op. cit., p. 552.)

A Terceira Turma do STJ acabou por seguir o voto da Ministra Nancy Andrighi concordando com a adoção de critério diverso daquele previsto no contrato social na hipótese de o sócio retirante não concordar com o resultado obtido e, embasando-se na jurisprudência daquela Corte, referendou o entendimento de ser o balanço de determinação o melhor critério a ser utilizado na apuração dos haveres. No tocante à metodologia a ser aplicada no levantamento do balanço, a Terceira Turma, por maioria, entendeu inexistir óbice à utilização do fluxo de caixa descontado, na medida em que esse método permite estabelecer o preço de mercado da sociedade, ou seja, o valor patrimonial real da empresa.

Oportuno ressaltar que a possibilidade de utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado está em consonância não apenas com a nossa jurisprudência, mas também com os princípios da vedação do enriquecimento sem causa e da boa-fé objetiva, devidamente positivados no Código Civil de 2002.

Fonte: RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.619 – SP (2011/0266256-3)