Partilha em Vida

CONCEITO

Ordinariamente, defere-se a partilha de bens em favor dos sucedidos após o evento morte, ou seja, os bens daquele que falece transmitem-se, ato contínuo, ao momento do óbito. Contudo, para a regular transmissibilidade de bens é necessária a abertura de inventário, através do qual se partilhará ou se adjudicará (por alvará ou arrolamento) os bens deixados pelo “de cujus”.

Embora seja a propriedade (e posse) transmitida a partir “do último suspiro” do falecido aos seus herdeiros (princípio da “saisine”), não raro o procedimento do inventário leva anos para ter fim, causando embaraços e dissabores formais e burocráticos. Em vista disto, os operadores do Direito das Sucessões se debruçam sobre o tema para evitar incidência de tributos, respectiva demora para efetivo registro de bens imóveis e transmissibilidade de bens móveis que exijam formalidades especiais.

            Com o fito de facilitar esse momento de continuidade patrimonial, transpassando os obstáculos burocráticos, estão os holofotes voltados para a partilha em vida, que nada mais é do que o adiantamento da distribuição do patrimônio de alguém antes do evento morte. Referido adiantamento também requer atenção a aspectos formais, porém viabiliza a retificação de eventuais incertezas, bem como antecipa e facilita a solvência tributária.

MODALIDADES

As principais ferramentas para consecução do fim distributivo dos bens em vida são: criação de pessoas jurídicas que concentrarão os bens, distribuição de quotas-sociais às tais pessoas jurídicas, implemento de “Holding Familiar”  ou manejo da doação diretamente em favor dos beneficiários e pretensos herdeiros (em que pese a distinção de institutos de doação e partilha em vida, sendo este instituto autônomo).

Parte da doutrina, inclusive aquela defendida por Silvio de Salvo Venosa, costuma dividir essa modalidade de partilha em “partilha doação”, quando feita por ato entre vivos, ou “partilha testamento”, quando feita por ato de última vontade. Note-se que, em qualquer das modalidades, o ascendente distribui os bens entre os herdeiros necessários, definindo o quinhão de cada um.

PREVISÃO LEGAL, NATUREZA JURÍDICA E ABRANGÊNCIA

Regulamenta o artigo 2.018 do Código Civil: “É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários”.

Com norte nesta disposição, fica clara a possibilidade de o ascendente dispor de seus bens em favor dos seus descendentes (e pretensos herdeiros) não só por testamento, mas também durante o curso da vida. Para tanto, exigem-se requisitos próprios deste instituto.

Primeiramente, deve-se demonstrar que a base fundante do instituto não é derivada da natureza jurídica do contrato de doação, pois, por mais que haja pontos em comum, a partilha em vida inaugura negócio jurídico “sui generis”, dentro de especialidades próprias, ainda que dependa daquele instituto para se aperfeiçoar.

Além disso, devemos ter em mente quem são os beneficiários desta modalidade de partilha. Há o entendimento no sentido de que poderia dispor para além dos descendentes – como previsto na redação legal – cabendo ao critério do partilhante a eleição dos que sejam os mais aptos a receber sua “herança” – desde que respeitados parâmetros sucessórios pós-morte. Neste sentido é a lição de Euclides de Oliveira, que assevera: “apesar da redação literal do art. 2.018, não há razão jurídica a impedir a partilha em vida por doação feita pelos descendentes, cônjuge ou outros parentes”.

LIMITES DAS LIBERALIDADES

Neste quesito de disposição patrimonial e limites de liberalidades é que deve pairar maior atenção daquele que se vale da partilha em vida.

Há grande divergência jurisprudencial e doutrinária sobre o tema. Para alguns não poderia ocorrer desigualdade de quinhões, já para outros, por se tratar de assunto próprio do Direito das Sucessões, teria certa autonomia liberatória para livre aquinhoamento em favor dos beneficiários.

Entende-se que, desde que respeitada a legítima (norma cogente, geral, de ordem pública), não há motivos para que haja milimétrico acerto entre os beneficiários, até porque estes devem anuir a validade do ato.

DISTINÇÃO ENTRE PARTILHA EM VIDA E DOAÇÃO

No campo da discordância dos que recebem os bens é que se tem origem na Jurisprudência maciça sobre o tema, trazendo grande amadurecimento dos estudos que distinguem a nomeação de bens em vida do instituto da doação (STJ – Resp nº 6.528/RJ).

Aqueles que se sentem preteridos ou mal aquinhoados, buscaram no Poder Judiciário, via de regra depois de implementada a morte do mentor-partilhante, a abertura do inventário com o objetivo precípuo de fazer incidir o instituto da colação, isto é, pretendem igualar as quotas hereditárias dispostas em vida – nos termos do artigo 2.002 do Código Civil.

A solução para esta questão encontra eco na natureza jurídica do instituto da colação – conforme aponta a maior parte dos julgados – isto é, por ser decorrência direta do contrato de doação só deverá ser aplicada quando pré-existente doação (sem cláusula de dispensa e retirada da parte disponível). Ao revés, não deverá ser aplicado nos casos de partilha em vida. Com efeito, o instituto visa, mormente, à inexistência de inventário (via adequada para exigir colação). Outrossim, não obstante a necessidade de doação para o fim da partilha em vida, este é meio – não o fim – que se pretende alcançar.

Nem por isso a partilha em vida fica isenta de questionamento judicial quando desprezados os requisitos sucessórios, como, por exemplo, na doação de todo o patrimônio (artigo 548 do Código Civil). Esta partilha eivada de vício deverá ser atacada em vias ordinárias de nulidade ou anulabilidade negocial, jamais em sede de inventário e/ou colação.

Já quanto à distinção entre os institutos da colação e da partilha em vida, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu:

“APELAÇÃO CÍVEL. SUCESSÕES. AÇÃO ORDINÁRIA DE COLAÇÃO. PARTILHA FEITA POR ATO INTER VIVOS. ESCRITURA PÚBLICA. DISCREPÂNCIA ENTRE OS VALORES DOS QUINHÕES HEREDITÁRIOS. Tratando-se de partilha em vida, não há falar em colação de bens, e sim, tão somente, em redução de quinhão hereditário quando afrontada a legítima de algum dos herdeiros. Todavia, no caso concreto, nem mesmo a perseguição da afronta à legítima é possível. Isso porque, no momento da partilha em vida, todos os herdeiros necessários eram maiores e capazes, e o direito à herança é direito patrimonial disponível. Assim, ainda que tenha havido distribuição não equânime do patrimônio, havendo concordância expressa de todos, não há falar em revisão posterior”

(Apelação Cível nº 70038022372, Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, DJ: 01/12/2011).

Assim, se respeitadas diretrizes liberatórias (artigo 548 do Código Civil: “É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.”) e as regências sucessórias da não preterição dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro), grande benesse prática pode favorecer tanto aquele que faz o ato de disposição – pelo fato de ter (relativa) certeza da distribuição conforme seu crivo – como aquele que é beneficiado com a partilha em vida, pois, salvo estipulação em contrário, já antecipa o momento de incidência tributária.

BIBLIOGRAFIA

DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

DINIZ, Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: Direito das Sucessões, v. 6. São Paulo: Saraiva, 2012.

OLIVEIRA, Euclides de. Código Civil Comentado, v. XX. São Paulo: Atlas, 2004.

MAMEDE, Gladson. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil, v. 7 e 21. São Paulo: Saraiva, 2003.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

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